O que são contos de fadas?
Foram os franceses, no século XVII, a criar o
termo conte de fée, ou conto de fadas, que depois vem a dar em
inglês o fairy tale. Antes disso, o conto de fadas não existia
propriamente. Havia contos de tradição oral, sobretudo no Centro da Europa, que
iam buscar, de forma muito dispersa, elementos ao mito, às grandes tradições
religiosas, a simbólicas de vários tipos, à literatura antiga, à medieval. São
contos que evoluem de uma série de elementos sincréticos, que se vão desenvolvendo
e constituindo em narrativas. A partir do século XVII emergiu uma tradição
erudita do conto de fadas, que ganha força com contadores de histórias como
Charles Perrault, que a recolhem a partir da tradição oral e a reescrevem. O
conto de fadas moderno, tal como o conhecemos, tem origem nessa tradição
erudita, promovida por pessoas como Perrault, os Irmãos Grimm, Hans Christian
Andersen. Deste modo, passou a ser uma forma de cultura elaborada e deixou de
ser uma mera literatura oral cultivada e transmitida sobretudo pelas populações
rurais, tornando-se uma cultura de salão.
E eram lidos ou contados?
Nessa
altura passam também a ser escritos, o que se deve à invenção da imprensa, no
século XV, e à crescente alfabetização. As classes elevadas aprendem a ler e
tornam-se capazes de reproduzir, porque se tornou moda, as narrativas orais por
escrito.
Como caracteriza o conto?
Nos
contos de tradição oral europeia há dois tipos de componentes: um, puramente
oral, que tem a ver com eventos locais que são fantasiados e contados como
histórias fabulosas, de pasmar. E outro, com as narrativas populares, que
aglutinaram imaginários religiosos e simbólicos, cristãos e pré-cristãos, mitos
provenientes da Antiguidade, enraizados na mitologia céltica e greco-romana,
que se constituem como narrativas autónomas, não necessariamente ligadas ao que
acontece, ao que se conta de forma efabulada. Interessante na tradição
estritamente popular do conto é a falta do elemento feérico, encantatório. A
tradição oral popular portuguesa, por exemplo, é constituída por narrativas
curtas, muitas vezes cruas, pragmáticas, despojadas do elemento feérico,
profundamente mágico.
Sem fadas, duendes, magias?
Nada
como nos contos de Grimm ou de Andersen. Têm personagens de tipo diferente,
quase prosaico, que têm muito a ver com o universo do conto português. Coisas
espantosas, como as almas penadas, a bruxa, a moira, o lobisomem, o olharapo,
típicas do imaginário popular português, mas que não são exactamente a bruxa, a
fada, os animais de que falam os contos feéricos. São mais personificações das
fantasias e medos da aldeia.
Isso é específico de cada cultura ou há elementos comuns nas
diversas culturas?
A
Índia, a China, assim como as culturas africanas e latino-americanas, têm
contos populares espantosos. Aí, o conteúdo simbólico, arquetípico, é muito
forte, porque esses contos normalmente são versões populares de problemáticas
de carácter religioso, iniciático e filosófico que em parte se encontram também
nos Grimm.
As que sempre ocuparam a cabeça dos homens…
De
onde viemos, quem somos, para onde vamos. Há toda uma tradição popular que
veicula esse questionamento universal. E depois há a que veicula apenas os fantasmas
e as fantasias pessoais, os medos e superstições de uma comunidade local. São
coisas diferentes. Esta última é feita de efabulações, que tendem a gerir
tabus, interditos, morais estreitas, o que a aproxima muito da fábula.
Há diferença entre a fábula e o conto de fadas?
A
fábula tem uma «moral da história», o conto de fadas não. Os contos de fadas
propõem uma descoberta ética, e por isso não aparece a problemática da formiga
e da cigarra…
A fábula também vem da tradição oral?
Vem.
A tradição oral tipicamente portuguesa tem muito de fábula: quer ser educativa,
dizer às pessoas o que elas devem ou não fazer, tende a veicular uma moral, um comportamento social. Ao passo que o
conto de fadas não, subverte aquilo que se chama não somente a cultura estabelecida
mas a ordem racional estabelecida. Quando se começa por «Era uma vez» coloca-‑se
a criança no domínio do intemporal, do não-tempo, onde tudo é possível, a Terra
do Nunca onde Peter Pan gostava de levar os amigos e mostrar-lhes uma nova
dimensão das coisas, outra ordem de possibilidades…
De onde ele nunca queria sair…
Porque
é tão mágica, tão fabulosa, tão maravilhosa, encanta tanto, que remete para uma
realidade paralela. Essa realidade paralela é, no fundo, o outro lado das
coisas, a realidade criativa e paradoxal dos nossos sonhos – por isso é que a
psicanálise se interessou pelo conto…
Os contos são para crianças ou para adultos?As
narrativas populares não são especificamente para crianças, embora tenham um
elemento de sedução muito forte para elas – que estão muito mais próximas deste
imaginário, do inconsciente arquetípico, da imaginação activa. E os adultos
também adoram essas narrativas precisamente porque os introduzem nesse elemento
que tende a ser esquecido pelo adulto com a socialização, a aprendizagem
excessivamente dirigida e a extrema especialização social – no fundo, a racionalização
do significado das suas relações sociais, de uma imagem do mundo unívoca, da
forma como sente, como pensa. Por isso, o acesso ao arquetípico só se faz
através do sonho ou da experiência psicótica – o que neste caso é uma
patologia.
Precisamos de magia?
O
feérico dos contos tem a ver com a imaginação e a criatividade. Não basta
imaginar que uma coisa pode ser diferente. Tenho de ter a convicção de que
posso introduzir nos acontecimentos essa diferença. É isso que o conto de fadas
nos traz. Mais, nestes contos existe uma dimensão ética, um entendimento em
liberdade. Impedem que sejamos transformados apenas em instrumentos
institucionais, preserva o espaço do indivíduo. São importantes para mantermos
a chama do inconformismo, da inquietação, e isso é fundamental para uma
cidadania sadia que, creio eu, começa com os contos de fadas, com o
maravilhoso, com a capacidade de dizer que as coisas podem ser diferentes e que
nem sempre são o que parecem.
Bettelheim, na Psicanálise dos Contos de Fadas, fala da função estruturante
do conto, da noção de bem e de mal em relação às crianças. O Capuchinho
Vermelho e o Lobo Mau, a conotação sexual que as personagens podem ter…
No
caso da psicanálise dos contos de fadas existem duas tendências: a de tipo
Bruno Bettelheim, que faz a análise dos contos pelo seu lado melhor – psicológico,
antropológico, sociológico –, e que vai buscar a psicanálise não freudiana
clássica do género «o Capuchinho Vermelho tinha um capuchinho vermelho porque
representa a primeira menstruação da menina, e o lobo come-a». E a chamada psicanálise
tradicional dos contos de fadas que é fortemente freudiana, altamente redutora,
onde tudo é remetido para uma simbólica libidinal. Para esta, os contos de
fadas são metamorfoses do imaginário da libido. Já Bettelheim vai mais longe.
Ele abre a análise dos contos à dimensão do sonho, ao inconsciente, ao símbolo,
no sentido antropológico das várias escolas de psicanálise, nomeadamente
junguianas. É um universo respirável. Quando se lê a análise dos contos de
fadas de Bettelheim aprendemos bastante sobre nós. Mas se apenas se lê as
análises redutoras do conto de fadas em termos excessivamente freudianos (de
matrizes redutoras) não se vai longe no auto-conhecimento.
E matamos o conto…
Completamente.
Perdemos o direito à magia, no sentido imaginativo e criativo do termo. Há um
elemento importante no conto: a relação entre emoções positivas e negativas. A
criança, quando se conta um conto de fadas – esses onde ainda existe emoção
primordial e crueldade primitiva, como é o caso dos de Perrault ou dos dos
Irmãos Grimm –, identifica-se com o herói ou com a heroína, seja rapaz ou
rapariga. Isso joga com a ambivalência sexual da criança, com a capacidade de
lidar com o feminino e o masculino dentro de si. E há outro aspecto: o conto
cria um cenário, a história, em que o herói se movimenta, e a criança, ao
identificar-se com o herói, evolui nessa proposta de viagem, nessa demanda…
É uma viagem iniciática…
É.
O herói vai passar por determinadas aventuras, onde se confronta com o seu
próprio eu e não com a moral pré-estabelecida. Quando a criança pergunta «O
lobo é mau?», o contador deve sempre dizer: «O que é que tu achas?»,
deixando-lhe a liberdade de descobrir. Muitas vezes a criança identifica-se com
o lobo e quer saber por si própria como é e por que mataram o lobo.
Houve tentativas de os tornar «politicamente correctos».
Isso
destrói o conto de fadas, porque o importante é que o herói – o eu da
criança – se movimente numa determinada realidade que lhe é dada pelo conto, e
que tem semelhanças com a realização dos nossos sonhos. Quando sonhamos somos
heróis do mundo onírico, fazemos um determinado percurso e é aí que o risco e o
inconfessável vêm à superfície – e temos de lidar com ele. Quando se conta um
conto de fadas, a narrativa provoca efeitos na criança. A tensão aumenta, e
depois segue-se uma solução e a criança experimenta o alívio, por exemplo.
Quando uma criança ouve com atenção o verdadeiro conto de fadas, tudo nela
acompanha o conto: a acuidade neuro-sensorial, o ritmo cardíaco, a respiração.
Nesse sentido, o conto desempenha uma função muito estimulante e integradora.
As narrativas confrontam a criança com dualidades: o ódio e a compaixão, a
culpa e o perdão, a tristeza e a alegria, o medo e a coragem, a confusão e a
lucidez, a mentira e a verdade. Mas o conto de fadas não diz o que é mentira ou
verdade, é a criança que tem de lidar livremente com esse material.
É preciso saber contar.
Os
adultos não têm histórias relevantes para contar às crianças, não sabem contos
que as seduzam, que lidem com o imaginário delas. Um conto de fadas nunca
deveria ser lido. O adulto deve aprender o conto e depois contá-lo, de viva
voz.
O que os torna tão importantes?
É
saber que dentro de mim estão todas as personagens dos contos de fadas e que eu
próprio sou um herói de mil faces, sempre em demanda de significado, superação,
maturidade. É este herói em nós que está por detrás das nossas decisões,
afectos, sonhos. A criança começa muito cedo a lidar com as fantasias e as
emoções ligadas ao desejo. A força estruturante de um conto de fadas é o desejo
de o herói levar um certo percurso até ao fim. Passar por desafios que tem de
superar, como o medo – veja João e o Pé de Feijão: o
gigante que está nas nuvens, o João vai lá e rouba ao gigante uma série de
objectos simbólicos. A força do gigante representa essa força primordial do
desejo, muitas vezes de uma tremenda crueldade, a força do instinto de posse.
A Bela e o Monstro… é quase óbvio.
Exactamente.
Mas a criança é convidada a lidar com isso. E com o universo das metamorfoses,
quando a criança é levada a tratar com afecto e compaixão uma criatura
disforme. Em A Bela e o Monstro, ela nunca supôs que por baixo
do monstro de aparência terrível havia um príncipe encantado. E percebe que se
eu não conheço o outro, se não dou tempo a que o outro se transforme perante
mim, então não posso ter uma relação correcta com ele. Não posso julgar as
coisas pela sua aparência. Lidamos com uma coisa que depois se revela como
sendo outra. E há, sobretudo, a capacidade de amar e de respeitar a diferença,
a compreensão de que o afecto e a compaixão provocam metamorfoses na relação
com o outro.
Os contos podem ser violentos para uma criança.
Claro
que sim. Há coisa mais violenta do que o caçador apanhar o lobo, abrir-lhe a
barriga, enchê-la de pedras e depois atirá-lo para o rio? Mas não se deve
caramelizar os contos: omitir a crueldade, o amor, a morte. São experiências
fundamentais para a criança. Aprender a lidar com a morte como impermanência,
com o fim das coisas, perceber que a realidade muda continuamente e que é
possível lidar com isso.
Há também a sereiazinha, que troca a voz pelas pernas e cada
passo que dá em direcção ao príncipe é extremamente doloroso.
Esse
é o preço a pagar. O crescimento, a aquisição das faculdades de inteligência,
de emoção, de actuação, de acção pressupõem transformações. Alguma coisa tem de
ser deixada para trás, é o crescimento dialéctico no conto de fadas. Não
podemos continuar a ser Peter Pans e há coisas que temos mesmo de rejeitar para
crescer. Os contos de fadas têm a ver com todos esses desafios, tratam
arquétipos do crescimento: o medo, o confronto, a superação. O herói da
história tem de arranjar soluções para tudo e a criança descobre possibilidades
de enfrentar o seu medo como uma coisa natural.
Está a perder-se a tradição dos contos de fadas?
Hoje
prefere pôr-se a criança em frente à televisão do que contar-lhe uma história.
E os adultos também têm uma relação estranha com o tempo. Acho que a maior
parte dos adultos tem um problema complicado que é não saber lidar com o seu
próprio crescimento. Eu, como toda a gente, faço montes de coisas. Mas uma
coisa é certa: tenho tempo para contar contos de fadas ou para escutar alguém
que diga que precisa de falar comigo. Sou capaz de rupturas para isso. Quando
abdicamos de imprevistos, de espaços novos na nossa vida, começamos a caminhar
para a morte. Porque não conseguimos introduzir vectores de criatividade, de
novidade nas nossas vidas. O conto de fadas convence-nos de que somos capazes
de criar essas rupturas.
Temos mesmo de ter tempo para os contos.
E
é importante dizer aos pais: «Guardem o livro. Aprendam a história e
contem-na». É muito mais sedutor para uma criança ver a disponibilidade de
alguém. Bettelheim fala muito nisso: a disponibilidade do adulto para contar
uma história a uma criança é também uma disponibilidade para si próprio, ou
seja, há uma interacção de disponibilidade entre a disponibilidade da criança e
a do adulto e isso é muito importante. Habituarmo-nos a que há momentos mágicos
em que toda a disponibilidade pode ser restabelecida, a interacção do contar em
que a criança e o adulto podem encontrar ao mesmo nível essa disponibilidade
primordial de cada um de nós. É esse momento feérico em que tudo é possível, em
que as coisas mais abstrusas, mais medonhas, mais terríveis, podem encontrar
solução. Numa época em que estamos a ser submersos pelo pessimismo face à
tragédia do mundo, isso ainda é mais relevante.
Essa tragédia sempre existiu…Mas
hoje entra-nos pela casa dentro. Devemos conduzir a criança para esse mundo de
disponibilidade e dizer-lhe: «Será que a história do mundo pode ser contada de
outra maneira? Será que a realidade pode ser reinventada?» Não tanto do ponto
de vista da economia do problema, mas das soluções. O conto de fadas remete
para soluções e não para problemas sem saída. Às crianças não lhes interessa o
problema, mas a solução.
O que sugere aos pais?
É
mais interessante fazer com que a criança recrie a narrativa do que darmos-lhe
isso como uma coisa materialmente estática – caso do livro que está ilustrado.
As crianças devem imaginar a sua bruxa, o seu gigante, o seu lobo, a sua noite,
o seu dia, a sua lua, os seus medos, a sua coragem – cada criança viverá isso
de maneira específica. Mostrar a um grupo «estão a ver como é?» é empobrecer
essas crianças, é contribuir para as tornar cidadãos obtusos, porque foram
habituadas a ter apenas uma imagem das coisas dadas, tornam-se seres
conformados. Deste modo não são capazes de ter a sua versão dos acontecimentos,
não são habituados a essa diversidade de reacções perante a mesma coisa, e ao
respeito que as pessoas merecem por sentirem de maneira diferente e assim potenciarem
soluções diferentes para a mesma coisa.
Acredita em fadas?
Daquelas fadinhas tipo Sininho, claro que não. Mas acredito que
os nossos sonhos são povoados por seres fantásticos – pois há em nós elementos
de carácter psicológico e emocional inconsciente e arquetípico, toda uma
simbólica que acaba por se reflectir, de forma viva, nas nossas relações com o
mundo. Atrás de cada objecto experimentado por nós, por mais inanimado que seja,
há, de certa forma, uma consciência viva. O universo em que se vive somos nós
que o fazemos, metamorfoseamos uma realidade que aparentemente é estática e
animamo-la com o nosso imaginário. E o que é que acontece? Uma coisa é eu olhar
para uma porta que é um objecto inanimado. Outra é sonhar com uma porta que se
abre e dá acesso a um elemento irracional e simbólico: a porta que me leva para
um outro mundo, para uma realidade diferente. Há elementos de carácter
mágico-religioso nos nossos sonhos, que correspondem um pouco a essas portas
que se abrem no conto de fadas, a esses seres pequeninos que servem de guias
nas nossas aventuras.
Referencia:
Texto de Sofia Barrocas, disponível em: http://tapetedesonhos.wordpress.com/2007/08/30/viver-com-as-fadas/
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